terça-feira, 15 de abril de 2014

O conflito na Ucrânia e o Direito Internacional (PARTE II)

Uma vez comentado o princípio da autodeterminação dos povos, passemos à sua análise em relação ao conflito na Ucrânia.

Os fatos envolveram a tomada de poder em Kiev, a deposição do presidente, o referendo realizado na Crimeia com a anexação desta pela Rússia e o reconhecimento do novo governo Ucraniano pela comunidade internacional.

A tomada de poder na Ucrânia está vinculada à rejeição ao então presidente Viktor Yanukovich. Segundo veiculado pela imprensa, o presidente deposto chefiava um governo corrupto e arbitrário que deveria ser trocado. Neste caso, também se aplica o direito à autodeterminação dos povos. O procedimento jurídico para a deposição está previsto no art. 111 da Constituição da Ucrânia (aqui).

Por sua vez, a Crimeia é considerada uma República Autônoma pela própria Constituição ucraniana (Vide artigos 85, inciso 28 e art. 106. Aqui). Não discutiremos o perfil da autonomia da Crimeia no Direito Constitucional ucraniano por razões óbvias.

De outro lado, o artigo 2º da Constituição da Ucrânia estabelece que a soberania ucraniana se estende por todo o seu território e que é indivisível. Portanto, alcança o território onde está a Crimeia.

A União Europeia e os Estados Unidos firmaram o entendimento de que a República Autônoma da Crimeia não teria direito de colocar em votação sua independência, como efetivamente o fez, em razão da indivisibilidade do povo e do território da Ucrânia. Representou uma violação à Constituição ucraniana e ao Direito Internacional.

Luiz Guilherme Arcaro Conci, professor de Direito Internacional Público da PUC/SP, mostrou que, do ponto de vista jurídico, não se pode falar no povo da Crimeia, mas somente no povo da Ucrânia, que inclui os habitantes da Crimeia, razão pela qual tal referendo teria sido ilegal (O povo detém a soberania. Falta definir quem é o povo, Carta Capital, 29.03.14. Aqui). Pode-se afirmar que o povo é único, porque tem sua unidade garantida pela respectiva constituição.

Dos argumentos expostos, não pretendemos colocar em questão a relevância jurídica da unidade e da integridade territorial de um Estado, nem mesmo o direito de destituir o seu mandatário. O que nos parece merecer atenção especial para compor a análise jurídica deste caso é a existência dos conflitos e como o poder foi tomado em Kiev.


Com relação à instalação dos conflitos, o fato é notório, inclusive com mortos e feridos de ambas as partes. Desde dezembro de 2013, prédios públicos foram invadidos pelos opositores do governo para exigir, entre outras coisas, a saída do Presidente. Foi dentro dessas condições que a votação para a deposição do Presidente se deu. Os meios de comunicação europeus transmitiram e comentaram esses fatos, especialmente, a RAI TRE italiana e a a Eronews (aqui1 e aqui2). A ordem jurídica interna foi rompida, o que não se adequa ao Direito Internacional. 

Acrescente-se que boa parte dos revoltosos é composta por ativistas do Svoboda, partido ultranacionalista ucraniano, que não esconde o teor nazista de seus lemas e os meios violentos de atuação. A Áustria foi sancionada pela União Europeia (EU), em 1999, por ter admitido que o partido de ultradireita de feição nazista compusesse o governo. No entanto, causa-nos preocupação que o novo governo da Ucrânia já tenha sido, imediatamente, reconhecido e aceito pela UE, inclusive com o firmamento de um acordo.

Ao que se sabe, a EU entendeu que a tomada de poder pela oposição é um tema interno da Ucrânia. Além disso, afirma não ter havido protestos e nem ataques na Crimeia, mas somente em Kiev. Por isso, também não haveria razão jurídica a amparar o referendo realizado na Crimeia.

Não há dúvidas de que o confronto se deu fundamentalmente na capital ucraniana. Mas a ordem jurídica rompida foi a da Ucrânia como um todo e não somente a de Kiev. O povo ucraniano e seu território são únicos porque a ordem jurídica é única. Trata-se da mesma racionalidade jurídica que se empregou para condenar o referendo na Crimeia.

A considerar o contexto de conflito existente e de rompimento da ordem jurídica, proponho analisar o referendo na Crimeia a partir dos mesmos critérios adotados pela Corte Internacional de Justiça para a declaração de independência de Kosovo, tal como expusemos na postagem anterior (aqui).

Dessa forma, seria o caso de aplicação do princípio da autodeterminação dos povos – sem o limite da integridade territorial – em favor da população da Crimeia que se manifestou pela independência e pela anexação à Rússia (97% de aprovação), com base no art. 1º, Parágrafo 2º, Carta das Nações Unidas e no Princípio VI, “b”, da Resolução 1541 (XV) do Conselho de Segurança da ONU que garante a um território não autônomo o direito de associar-se a um Estado independente.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O conflito na Ucrânia e o Direito Internacional (PARTE I)

O direito à autodeterminação. O conflito na Ucrânia interessa a todo o mundo pelo simples fato de que a estabilidade internacional alcança a todos direta ou indiretamente.

O Direito Internacional deve uma resposta.

Acredito que a questão central do conflito é o direito à autodeterminação dos povos. Como deve ser compreendido? Quais são seus limites? Como aplicá-lo à Ucrânia e à Crimeia? Diante das perguntas, proponho alguns subsídios para o diálogo no âmbito jurídico. Serão feitos em duas partes para se adequar a este espaço.

O direito à autodeterminação dos povos impõe à comunidade internacional o dever de respeitar a decisão de cada povo com relação à sua independência e à definição de seu próprio regime jurídico-político.

Esse princípio pode ser extraído do Artigo 1º, parágrafo 2º, da Carta das Nações Unidas, que o menciona expressamente. A aplicação desse direito pode ser encontrada em diversas Resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Alguns exemplos: nº 1514 (XV), nº 1541 (XV), 1654 (XVI) do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas – ONU, e a Resolução nº 2625 (XXV) da Assembleia Geral da ONU.

Há limite ao princípio da autodeterminação dos povos? Não é raro encontrar na doutrina o entendimento de que esse princípio encontra seu limite na integridade territorial (Jaume Saura. Aqui). Esse pensamento pode ser amparado pelo inciso 6 da referida Resolução 1514 (XV) que declara “todo intento destinado a quebrantar total ou parcialmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas.”

Mesmo quem partilha dessa tese admite – ou pelo menos deveria admiti-lo – que tal limite não é de aplicação absoluta. A própria Resolução nº 1541 (XV) do Conselho de Segurança da ONU, em seu Princípio VI, do anexo, prevê exceções:
“Pode-se considerar que um território não autônomo alcançou a plenitude do governo próprio: a) Quando passa a ser um Estado independente e soberano; b) Quando estabelece uma livre associação com um Estado independente; c) Quando se integra a um Estado independente.”

No entanto, ao julgar a legalidade da declaração de independência de Kosovo, a Corte Internacional de Justiça entendeu que a finalidade do princípio da integridade territorial está circunscrito à esfera da relação entre os Estados. As manifestações internas não são alcançadas pelo princípio da integridade territorial. (Advisory Opinion of 22 July 2010, Accordance with Internacional Law of the unilateral declaration of independence in respect of Kosovo, § 79 e §83. Aqui).

A Corte invocou três disposições para sustentar esse entendimento:

a) o Artigo 2º, § 4, da Carta das Nações Unidas que estabelece que “4. Los Miembros de la Organización, en sus relaciones internacionales, se abstendrán de recurrir a la amenaza o al uso de la fuerza contra la integridad territorial o la independencia política de cualquier Estado, o en cualquier otra forma incompatible con los Propósitos de las Naciones Unidas.” (destaque meu)

b) O art. IV do Ato Final da Conferência de Helsinki sobre Segurança e Cooperação na Europa, de 01 de Agosto de 1975, no qual se declara que “[t]he participating States will respect the territorial integrity of each of the participating States”; 

c) Resolução 2625 (XXV), da Assembléia Geral da ONU, intitulada “Declaration on Principles of International Law concerning Friendly Relations and Co-operation among States in Accordance with the Charter of the United Nations”, que também reitera o mesmo entendimento: “[t]he principle that States shall refrain in their international relations from the threat or use of force against the territorial integrity or political independence of any State.”

A Corte inclusive enfrentou a argumentação da Sérvia e de outros participantes do processo no sentido de que o princípio da integridade territorial está implícito no direito à “self-determination”. 

A Corte afastou a argumentação mostrando que os precedentes trazidos não se aplicavam ao caso. Todos foram declarações de independência feitas com base na violência, o que comprometeu a legalidade (§§ 80 e 81).

A declaração de independência de Kosovo, em relação à República da Sérvia, se deu em 2008. A Constituição da Sérvia de 2006 previa a “Província de Kosovo” como parte do território da Sérvia (preâmbulo, artigos 182 e 114. Aqui).

A Corte Internacional de Justiça também levou em consideração a Resolução 1244 (1999) do Conselho de Segurança da ONU, que autorizava a presença internacional no território Sérvio na tentativa de solucionar os conflitos ali existentes. Sustentou que essa Resolução também compunha o marco jurídico dentro do qual a declaração de independência foi proclamada.

Cabe recordar, entretanto, que antes mesmo da sobrevinda da referida Resolução da ONU (1999), a Constituição vigente na Sérvia à época (de 1990) também já estabelecia que a Província autônoma de Kosovo integrava o território sérvio (artigos 6 e 108. Aqui).

Duas conclusões se podem extrair do entendimento da Corte:

a) a Resolução 1244 (1999) da ONU passou a integrar o marco jurídico existente, a partir de 1999, de maneira a reconhecer a existência de conflito na região, e não para negar a Constituição então vigente (de 1990).

b) a declaração de independência feita em 2008 se colocou, formalmente, contra a Constituição de 2006, mas não foi considerada como ilegal em vista do contexto de conflito em que foi proclamada e, sobretudo, por força do princípio à autodeterminação dos povos.

Diante do exposto, propomos a seguinte conclusão sintética: segundo o Direito Internacional, a Constituição e a integridade territorial não configuram obstáculos capazes de impedir a declaração de independência, quando tal declaração se dá em um contexto de conflito.


Na próxima postagem, segue a reflexão com relação à aplicação do direito à autodeterminação à situação da Ucrânia.