sábado, 25 de julho de 2015

A PEC 80/2015 repete a sistemática federal e não viola o pacto federativo




Introdução. Voltamos ao tema da PEC 80/2015, que estabelece a competência exclusiva dos advogados públicos autárquicos e fundacionais para a representação e consultoria jurídicas dos respectivos entes da Administração Indireta. 

No curso dos debates acerca da PEC 80/2015, verifica-se a insistência na tese – que acreditamos incorreta – de que as procuradorias-gerais são as representantes judiciais exclusivas das Administrações Públicas Diretas e Indiretas dos Estados, e que a PEC 80/2015 viola o pacto federativo.

A PEC 80/2015 e a inaplicabilidade do art. 69 da ADCT. Reafirmamos que não há referência no texto Constitucional (art. 132) às entidades da Administração Indireta dos Estados federados para fins de advocacia pública. Numa perspectiva literal, histórica, sistemática ou teleológica, verifica-se que o dispositivo trata apenas da representação da pessoa jurídica da Unidade Federada pelos procuradores de Estado.

Invocar o art. 69 da ADCT para afirmar que a representação estadual tanto da Administração Direta quanto dos entes da Administração Indireta se deve a um único órgão (as procuradorias-gerais) não nos parece apropriado e convincente. Eis o texto do artigo:

Art. 69. Será permitido aos Estados manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacia-Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas funções”.

Em primeiro lugar, o referido dispositivo se reporta somente aos casos de Consultorias Jurídicas. Não envolvem a representação judicial ou extrajudicial propriamente dita. Por essa razão, o referido comando constitucional transitório não se amolda à hipótese em discussão.

O dispositivo é também inaplicável porque não envolve a Administração Indireta. À época da promulgação da Constituição de 1988 havia consultorias internas de distintos órgãos da Administração Direta que gozavam de autonomia (especialmente no âmbito federal). O constituinte buscou impedir que as consultorias de órgãos – frutos da desconcentração – atuassem com a autonomia própria dos departamentos jurídicos de entidades personalizadas que são o resultado da descentralização. O que se buscou foi a padronização  dentro de uma mesma pessoa jurídica.

Como se constata, a finalidade do art. 69 da ADCT acaba por reafirmar o respeito à descentralização ao promover a necessária correção: somente poderão atuar como departamentos jurídicos autônomos aqueles pertencentes a pessoas jurídicas decorrentes da descentralização. Os novos departamentos jurídicos internos da Administração Pública Direta deviam adequar-se aos mecanismos que a desconcentração requer: subordinação ao poder central.

Assim, o art. 69 da ADCT não serve de apoio para justificar a exclusividade de representação judicial pretendida pelas procuradorias-gerais, mas sim para ratificar a necessidade de autonomia dos entes da Administração Pública Indireta que necessitam de representação jurídica própria.

A PEC 80 e a sua compatibilidade com a sistemática da AGU. É interessante notar que a sistemática proposta pela PEC 80 é a mesma da existente âmbito federal. Ao contrário do que se tem afirmado, a Constituição Federal não deu tratamento distinto à União e aos Estados no que tange à representação judicial das respectivas Administrações Direta e Indireta.

O art. 131 estabeleceu que é a Advocacia-Geral da União (AGU) a que representa com exclusividade a União. Não há menção à representação dos entes da Administração Indireta da União, tal como acontece com referência aos Estados, no art. 132.

A conclusão de que a representação jurídica da Administração Indireta da União é apenas vinculada à AGU – e não subordinada – é amparada pela Constituição. Para comprovar a validade desta tese, basta verificar que as entidades autárquicas e fundacionais da União têm representação judicial e extrajudicial feita por suas próprias procuradorias. A Lei Orgânica da AGU (Lei Complementar nº 73/93) é claríssima em seu Capítulo IX, cujo título é “Dos Órgãos Vinculados”:

 “Art. 17 - Aos órgãos jurídicos das autarquias e das fundações públicas compete:
I - a sua representação judicial e extrajudicial;
II - as respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos;
III - a apuração da liquidez e certeza dos créditos, de qualquer natureza, inerentes às suas atividades, inscrevendo-os em dívida ativa, para fins de cobrança amigável ou judicial.

Ademais, o artigo 2º da referida LC 73/93 também é claro ao estabelecer que as procuradorias seccionais, por exemplo, são subordinadas diretamente ao Advogado-Geral da União (§ 1º), mas, com relação às autarquias e fundações públicas, o § 3º apresenta, expressamente, o regime da vinculação:

§ 3º - As Procuradorias e Departamentos Jurídicos das autarquias e fundações públicas são órgãos vinculados à Advocacia-Geral da União”.

Se houvesse inconstitucionalidade na PEC 80/2015 seguramente já haveria sido proposta uma ação direta de inconstitucionalidade em face dos mencionados dispositivos da Lei Orgânica da AGU, o que não foi feito. Em verdade, nem o será, pois a LC 73/93, em perfeita harmonia com a Constituição, garante a autonomia dos órgãos jurídicos das autarquias e fundações públicas federais.

Cabe esclarecer que a unificação das carreiras da AGU levadas a efeito no âmbito infraconstitucional se voltou, exclusivamente, para fins de garantias de isonomia de direitos funcionais, pois se tratam de servidores públicos federais vinculados a um regime jurídico único.

É preciso destacar enfaticamente que a unificação das carreiras da AGU não se reportou às funções de advocacia pública em si mesmas. Estas permaneceram regidas pela LC 73/93, que estabelece a competência dos membros dos órgãos jurídicos das autarquias e fundações públicas para representá-las judicial e extrajudicialmente (art. 17); e regidas também pelo Estatuto da Advocacia/OAB que exige a independência do advogado, em qualquer circunstância.

Não obstante, a Súmula 644 do STF (DJU 09.12.2003) já reconheceu que a capacidade de representação dos advogados públicos das autarquias sequer necessita de apresentação de procuração, porque decorre diretamente da ordem jurídica, de forma a reafirmar a legitimidade e a autonomia da advocacia pública fruto da descentralização: “ao procurador autárquico não é exigível a apresentação de instrumento de mandato para representá-la em juízo”.

Relembre-se, por fim, que o novo código de Processo Civil, em seu art. 75, também não deixou dúvida a respeito das representações judiciais distintas da Administração Direta e da Indireta, tal qual comentamos no artigo anterior publicado neste espaço.

Pelo exposto, uma vez mais se reafirma a constitucionalidade e a necessidade da PEC 80.

A PEC 80/2015 não viola o princípio da forma federativa. Afirmar que a advocacia pública, tal como proposta pela PEC 80, viola o pacto federativo requer que se indique qual a regra de competência/organização constitucional do Estado é violada. Ninguém indica e nem irá indicar, porque inexiste violação.

A existência da advocacia pública autárquica e fundacional com capacidade de representação dos próprios entes não compromete as funções da Administração Direta (impropriamente chamada de “Central”) nem prejudica a independência do ente federado no âmbito do pacto federativo, tal como se demonstrou no artigo postado anteriormente neste espaço.

Se fosse inconstitucional a advocacia autônoma proposta pela PEC 80/2015, seria também inconstitucional o próprio fenômeno da descentralização, o que seria um absurdo jurídico.

Do mesmo modo, é argumento frágil afirmar que a existência de representação exclusiva pelas procuradorias-gerais é uma forma de prevenir litígios entre a Administração Direta e a Indireta. Ora, as procuradorias não têm a função judicante de solucionar conflitos. Se a detivessem, violariam o princípio constitucional da jurisdição. Ademais, os procuradores – e qualquer outro advogado público – não têm poderes jurídicos para evitá-los, uma vez que não se confundem com os gestores públicos que concretamente realizam os atos de Administração.

Aliás, não se pode esquecer que os gestores não se subordinam às opiniões dos procuradores/advogados públicos, razão pela qual os tribunais superiores, pacificamente, entendem que a responsabilidade é exclusiva do gestor por seus atos e não dos eventuais assessores jurídicos.

Enfim, cremos que há elementos seguros para reafirmar que a PEC 80/2015 não padece de inconstitucionalidade. Muito ao contrário, a proposta tem nítido fundamento republicano ao garantir a concretização, em todas as suas dimensões, da autonomia dos entes da Administração Pública Indireta, que são fruto da descentralização administrativa tutelada pela Constituição da República.

O que se afigura inconstitucional é a tese de que as procuradorias-gerais são representantes judiciais e extradjudiciais (e também consultores) exclusivos dos entes da Administração Indireta. A interpretação viola o princípio da descentralização administrativa, porque compromete a autonomia de tais entes. Por essa razão, tal interpretação afronta o art. 37, XIX, da Carta da República.


Um comentário:

Anônimo disse...

Professor, com a devida vênia, suas constatações estão dissociadas do que o Supremo tem dito sobre o assunto. Não proponho aqui que o Supremo Tribunal Federal seja o único e exclusivo intérprete da CF, não é isso, mas o fato de quem dá a palavra final ter se manifestado a respeito deveria ter um peso nas análises de quem escreve ou pesquisa sobre determinado assunto. Vide ADI 448/PR.
No julgamento da citada ADI, o assunto sobre a unicidade de órgãos jurídicos no âmbito dos Estados e DF foi expressamente abordado, chegando-se à conclusão que qualquer função, na administração centralizada ou não, de representação judicial ou consultoria só poderia continuar sendo exercida até que os cargos responsáveis por essa atuação vagassem, impedida a realização de novos provimetos, salvo se no cargo de Procurador do Estado.
Sua análise, outra vez com a devida vênia, passa por cima desses fatos sem reportar-se a eles, o que acaba afastando a cientificidade do texto.
Ademais, e apenas para ilustrar, a própria AGU apontou em seus pareceres a difereça expressa na CF com relação àquela e as PGE´s e PGDF.