terça-feira, 28 de julho de 2015

Os concursos públicos e os destinos da Ciência Jurídica



Regressando ao magistério do Direito Administrativo depois de três anos, um desconforto voltou ao meu juízo: a maioria dos alunos – e falo de uma maioria expressiva – assiste às aulas para extrair lições para serem aprovados nos concursos públicos. E nos demandam por isso.

Nada contra a opção pelos concursos públicos. Sou também concursado. Mas acredito que o problema é o que as bancas dos concursos vêm exigindo dos candidatos.

Ao ministrar as aulas e indicar o que deve estudar para passar nos concursos, sou obrigado a falar a verdade. Não é preciso conhecer em profundidade a teoria do Direito e nem mesmo a disciplina.

A receita para a aprovação se reduz à leitura do texto da lei, dos resumos e dos informativos do STF e do STJ. E só. Há que ter dedicação muito especial também de tempo, pois o volume de matérias é grande. E, então, o aluno acaba seguindo a receita para alcançar o seu objetivo.

Este quadro é preocupante, pois não se aprende de fato o Direito lendo resumos e informativos jurisprudenciais. No máximo, com esse tipo de estudo formamos instrutores que repetem, de modo até inconsequente, conhecimentos do qual não têm conhecimento de causa.

Já presenciei numerosas vezes – nos tribunais ou fora deles – uma discussão jurídica terminar com a força da autoridade: “o STF já decidiu assim”. E pronto, terminada a discussão. Como se isso bastasse para se decidir sobre um caso jurídico.

Há uma tendência em cobrar nas provas dos concursos, de forma exagerada, a jurisprudência dominante nos tribunais superiores. Por certo, se trata de uma importação acrítica do realismo jurídico norte-americano em que os precedentes judiciais desempenham um papel fundamental.

É prudente esclarecer que entendemos que a jurisprudência tem papel importante. O que criticamos é o exagero que se mostra evidente. E, com isso, perde em importância o conhecimento doutrinário construído ao longo dos anos.

Toda essa tendência tem refletido nos profissionais que assumem importantes cargos de carreira jurídica.  A cada dia mais, os pareceres, petições, manifestações, decisões, acórdãos revelam-se como um amontoado de citações de precedentes judiciais. Há pouca preocupação em discutir a estrutura, o histórico, a racionalidade de formação do Direito em disputa, e o pensamento dos mestres que se dedicaram ao tema. A maioria das vezes tudo fica reduzido à indagação se o caso está ou não de acordo com a jurisprudência vigente.

A tendência também vem refletindo nos livros publicados. Os mais vendidos são aqueles que apresentam os macetes e trazem questões de concursos. Ou então aqueles que “esquematizam” ou resumem a matéria e andam atualizados com a jurisprudência. Enquanto isso os grandes doutrinadores vão ficando esquecidos.

Há aspectos muito curiosos nesses livros campeões de vendas. Verifica-se, em quantidade, a citação de trechos de acórdãos para fundamentar algo que, na verdade, não é sequer o objeto central do acórdão em seu todo. Isso tem mostrado que qualquer frase ou parágrafo de um acordão pode converter-se em uma questão de concurso e, por isso, tornar-se uma “doutrina” nos livros. Nada mais perigoso e desastroso.

É tão contagiante esse mecanismo que nos vemos envolvidos nele nas tarefas jurídicas cotidianas (e aqui entra um mea culpa). Não é raro buscar, em primeiro lugar, uma jurisprudência para inserir na peça na crença de que damos mais credibilidade à tese que defendemos, em vez de apresentar os doutrinadores, que são os que verdadeiramente conhecem a matéria.

E há quem acredite que essa espécie de “decisionismo” seja mesmo o verdadeiro Direito. Argumentam que é a realidade do Direito; que é a única forma de construir o Direito de modo concreto e atualizado. Quem decide é quem faz o Direito, acreditam. Dizem, ainda, que o Direito é prática e estamos em uma era de mais dinamismo, em que tudo deve ser mais célere e objetivo.

Respeito essa posição, mas não posso estar de acordo. Vejo-a como um grave empobrecimento, como um desprezo à cultura jurídica, à doutrina, ao verdadeiro conhecimento do Direito. Fala-se de “objetividade” e “celeridade” como se a doutrina fosse sempre um amontoado infindável de subjetividades flutuantes e aleatórias totalmente incompatíveis com a pós-modernidade, o que não é verdadeiro.

É bom lembrar que expor a doutrina não significa, necessariamente, fazer longas peças. Pode-se fazê-lo de modo direto e objetivo sem deturpar as características do discurso e do espaço da prática forense.

A persistir e se aprofundar esse tipo de concepção “decisionista” do Direito, as pós-graduações serão voltadas a conhecer somente a jurisprudência, sendo desnecessários os doutrinadores. Esses cursos perderão a capacidade de ser solo fértil de produção de conhecimento jurídico.

A consequência natural é que o Direito deixará de desenvolver-se enquanto ciência, porque terá menos pessoas dedicadas ao seu estudo. É uma dura sina para a ciência jurídica, mas, infelizmente, previsível.

Enfim, sei que parece uma crítica simplista ao método dos concursos atuais. Não é fácil a tarefa de selecionar. Tenho consciência também de que a própria organização das carreiras jurídicas impõe dificuldades. O sistema judicial, por exemplo, leva o candidato a juiz a tornar-se um verdadeiro “especialista em generalidades”. É desumano o que deve conhecer (ainda que superficialmente) um candidato ao cargo de juiz.

O candidato detentor de boa experiência profissional, valoroso currículo acadêmico e portador de sólida cultura jurídica, provavelmente, não logrará aprovação na prova objetiva dos concursos se não parar para memorizar a literalidade dos textos legais em suas minúcias, não conhecer os macetes e sistemas das bancas examinadoras, além das posições atuais dos tribunais. E, neste caso, os serviços públicos perdem em qualidade.

Há muitos caminhos para corrigir e aperfeiçoar o sistema. Um deles é começar por repensar as próprias estruturas das carreiras jurídicas. Creio que a especialização é um caminho interessante. 

O Ministério Público, por exemplo, poderia criar condições para ter concursos distintos para área Penal e para a do Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Poder-se-ia aprofundar a exigência do conhecimento do candidato, obrigando-o a conhecer as disciplinas com mais profundidade, com exigência de bibliografia de peso. As cobranças de memorização de textos legislativos seriam abandonadas e também o “decisionismo”.

Há muitas outras sugestões, mas deixemos para outra oportunidade.

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