terça-feira, 12 de abril de 2016

Não se pode converter o impeachment em recall. (Entre pedaladas e punhaladas hermenêuticas)



O procedimento do impeachment é um julgamento jurídico-político voltado a destituir o chefe do Poder Executivo. É jurídico porque se exige a configuração de crime de responsabilidade como um pressuposto para que haja a condenação. É político porque é aceito pela Câmara, apreciado e julgado pelo Senado em processo presidido pelo Presidente do STF. 

Já o recall é o procedimento de destituição do chefe do Poder Executivo por razões puramente políticas. Trata-se de uma espécie de reprovação de desempenho ou uma “moção de desconfiança”. Mais tecnicamente, se pode dizer que é uma revogação do mandato que não está vinculada à existência do pré-requisito jurídico de cometimento de crime.

Vale lembrar que o Professor Fábio Konder Comparato sugeriu a inclusão do recall na elaboração da Constituição de 1988, mas foi rejeitada a sua sugestão. Foi incluído somente o impeachment.

É preciso ter cuidado para não se confundir os institutos. No impeachment há a necessidade de verificação de um pressuposto de natureza jurídica, que é a existência de crime de responsabilidade. Desconsiderar este pressuposto significará reduzir o impeachment a um processamento puramente político. Significará transformar o impeachment em recall sem amparo Constitucional.

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Pelo teor dos discursos dos parlamentares da Comissão até o momento (dia 08.04), não se está enfrentando a discussão sobre o pressuposto jurídico. Os discursos vêm caminhando para a lógica de que a Presidente deve ser condenada pelo “conjunto da obra”. Não é um bom caminho porque carece de fundamento na Carta da República.

Pode-se flexibilizar no aspecto político com base na conveniência e oportunidade, mas não no jurídico. Poderemos ter a configuração do crime de responsabilidade – atendendo o requisito jurídico – e o julgamento político entender que, ainda assim, não é melhor para a República destituir o mandatário. Nesse sentido, o próprio Michel Temer o admite em sua obra Elementos de Direito Constitucional (1997, p. 165).

O caminho contrário, entretanto, não é viável por conta do aspecto jurídico. Condenar por conveniência e oportunidade sem a configuração de crime de responsabilidade não seria permitido. Seria descumprir o art. 85 da Constituição.

Aliás, é interessante observar que o Ministro Gilmar Mendes ressalta, em sua obra Curso de Direito Constitucional, o caráter jurídico do processo de impeachment ao relembrar que “restou superada a tese, sustentada pelo Ministro Brossard, no sentido da não-cognoscibilidade do mandado de segurança [MS-MC-QO 21.564/DF, DJ 27-8-93] em razão do caráter eminentemente político da controvérsia” (2008, p. 927). Referia-se a apreciação judicial do processo do impeachment mesmo da fase preliminar de aceitação pela Câmara, onde se verifica no primeiro momento o pré-requisito jurídico. No mesmo passo, o Ministro relembra o MS 20.941/41 o qual reafirma que há aspectos jurídicos desse processo que podem ser submetidos ao controle jurisdicional (2008, p. 927).

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Juridicamente, acredito que não há a configuração de crime de responsabilidade contra a Presidente Dilma. Ora faltam elementos probatórios, ora tipicidade. Mas falta também a indicação do elemento subjetivo da conduta, que é o dolo. No caso, o obstáculo ao impeachment está no aspecto jurídico e não no político.

Não tratarei de todas as condutas apontadas pela denúncia do Reale Jr./Bicudo e da OAB. O objetivo não é fazer o papel de advogado da Presidente, mas de comentar determinados aspectos que podem ter repercussão futura na vida jurídica do País.

Dois pontos parecem relevantes e merecem comentários. São sobre as duas condutas mais destacadas na imprensa porque são as que possuem comprovação fática: as chamadas “pedaladas fiscais” e os decretos de abertura de créditos adicionais. Comecemos pelas pedaladas.

As denúncias de impeachment com relação às pedaladas se basearam na decisão do TCU de 2015. O TCU decidiu alterar o próprio entendimento jurídico que mantinha desde a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (2000).

Antes de qualquer coisa, é prudente destacar que é perfeitamente lícito ao TCU – e a qualquer tribunal ou juízo – alterar o seu entendimento. O direito é mesmo dinâmico porque é dotado de historicidade.

No entanto, o novo entendimento não poderia ser aplicado a fatos anteriores resultando em julgamento de contas como irregulares, tal como aconteceu no caso. Neste particular, o TCU violou o princípio da segurança jurídica e a disposição expressa da Lei 9.784/90. Uma verdadeira “pedalada hermenêutica”:

Art. 2º (...)
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(...)
XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

Enfrentando o mérito da questão, – independente da referida “pedalada hermenêutica” – o TCU entendeu que caracterizou operação de crédito (empréstimo) quando a União deixou de repassar o dinheiro à Caixa Econômica Federal e esta, sem receber recursos, ainda assim efetuou pagamentos a terceiros (beneficiários de programas sociais. Bolsa Família, por exemplo). 

Esclarece-se que, segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF, para a realização da operação de crédito é necessário o cumprimento de vários requisitos e estaria proibido à União fazê-la com bancos federais. Por isso, segundo a denúncia, praticou ato ilícito que violou a LRF para evitar desrespeitar a meta fiscal prevista no orçamento (mas que é apurada durante a execução financeira do orçamento). Respeitosamente, não há a menor base para essa conclusão do TCU. Explico em seguida.

Em primeiro lugar, é de se reconhecer que é um método (retardar repasses) reprovável de cumprir a meta fiscal. Não há dúvida sobre isso. O fato dos antecessores de Dilma já o terem feito não reduz ou altera a irregularidade. Mas esse método para evitar descumprir a meta fiscal não o faz descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, como ficará demonstrado a seguir. Não obstante, não existe crime de responsabilidade por violação à LRF, mas sim às leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA).

A Caixa firmou contrato de serviços com a União. Mas  por que isso? Elas são duas pessoas jurídicas distintas uma da outra. Lembre-se também que, do ponto de vista jurídico, a Chefe do Poder Executivo Federal não detém superioridade hierárquica com relação ao Presidente da Caixa e a nenhum outro dirigente de entidade da Administração Pública Indireta. Portanto, a Presidente não pode falar em nome do Presidente da Caixa. Cada qual se responsabiliza por seus atos. Por tudo isso, é preciso ter um vínculo jurídico que as ampare a transferir recursos entre si. Pode ser um negócio jurídico (contrato, convênio ou termo de parceria), tal como foi feito, ou mesmo a Lei.

Pois bem, no caso, a Caixa Econômica tinha a obrigação de efetuar os pagamentos a terceiros beneficiários de programas sociais e a União de repassar os recursos para esse fim. A União não efetuou o repasse na data estipulada. Descumpriu uma obrigação assumida. 

A CEF, por outro lado, cumpriu o que pactuou. Portanto, a Caixa não decidiu efetuar os pagamentos a seu cargo sem ter recebido os recursos da União como forma de ajudá-la a dar uma “pedalada”, ou, ainda, a Caixa não efetuou o pagamento para aproveitar a oportunidade para fazer um empréstimo (operação de crédito) sem a transferência de dinheiro ao contratante. Ela efetuou o pagamento porque estava cumprindo uma obrigação assumida anteriormente. Simples assim.

Além disso, a escolha da Caixa Econômica para a execução da operação do Bolsa Família, por exemplo, não foi uma opção discricionária da Chefia do Executivo, pois a Lei 10.836/2004 assim o determinou: Art. 12. Fica atribuída à Caixa Econômica Federal a função de Agente Operador do Programa Bolsa Família, mediante remuneração e condições a serem pactuadas com o Governo Federal, obedecidas as formalidades legais.

Aliás, a CEF sequer poderia invocar o princípio da “exceção do contrato não cumprido” para deixar de efetuar os pagamentos a seu cargo. Essa teoria não se aplica ao direito público tal como foi concebida no direito privado. Não tinha como deixar de pagar, uma vez que deveria cumprir o firmado no contrato.

No direito público, as hipóteses para usar o princípio da “exceção do contrato não cumprido” são tipificadas. A que poderia ser utilizada pela Caixa é a contida no art. 78, XV, da Lei 8.666/93 que autoriza a suspensão da execução do negócio jurídico ou a sua rescisão quando o atraso do pagamento superar a 90 dias, ressalvados os casos de calamidade pública.

Não é por outra razão que o próprio contrato de execução do Bolsa Família, por exemplo, contempla em sua subclásula oitava essa possibilidade em caso de atraso:

Subcláusula Oitava - Na eventual insuficiência de recursos na Conta Suprimento para o pagamento de benefícios constantes das folhas de pagamento das Ações de Transferência de Renda, fica assegurado à CONTRATADA o direito de optar pela suspensão deste serviço até que seja normalizado o fluxo financeiro, conforme Inciso XV do art. 78, da Lei n°8.666, de 1993.

Cheguei a ver comentários de que a Caixa poderia não efetuar os pagamentos aos beneficiárias por causa do inadimplemento da União e suspender imediatamente a execução deste contrato com base nesta cláusula. Entendimento incorreto. A cláusula remete ao art. 78, XV que estipula o prazo de 90 dias.

Assim, como entender que o atraso no repasse converte a situação já prevista em lei e no contrato em uma operação de crédito que é um novo contrato? Nem mesmo na China isso seria possível. E digo literalmente. O problema aqui é mais de lógica jurídica do que propriamente de Direito Administrativo contratual.

Inobstante, tal inadimplemento não foi praticado pessoalmente pela Presidente da República, porque não assinou diretamente os instrumentos e sim o Ministro; nem se trata de um ato de “direção superior da administração federal” que é sua atribuição por força do disposto no art. 85, II, da Constituição.

A conduta punível deve ser personalíssima, de forma a que há que se provar a participação pessoal da acusada em ato que se configure um crime de responsabilidade. Ainda que fosse ato que caracterizasse crime de responsabilidade – mas não é, como se viu – não basta dizer que “ela sabia” ou “não é crível que ela não tenha emitido uma ordem” ou coisas do gênero. 

Não havendo prova de participação dolosa em condutas criminosas, impossível a responsabilização apelando apenas para o aspecto político. Agir assim seria confundir impeachment com recall.

As chamadas “pedaladas fiscais” caracterizam, em verdade, inadimplência da União, que têm efeitos jurídicos próprios, é claro. Os juros são um deles. Mas, um desses efeitos não é, com toda certeza, a sua conversão em operação de crédito. Com todo o respeito, o entendimento do TCU não se sustenta e, por consequência, também não se sustenta a denúncia da caracterização de crime de responsabilidade feita a partir desta conduta. Ademais, repita-se que não existe crime de responsabilidade por violação à LRF (se fosse ela violada, o que também não é o caso).

Enfim, interpretar que o inadimplemento da União e o adimplemento da Caixa configuram operação de crédito equivale a uma verdadeira “punhalada hermenêutica”.

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Quanto à abertura de créditos adicionais suplementares em desacordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, o fato também está provado e é incontroverso.

Acusa-se a Presidente de haver baixado Decretos para tanto que violaram a meta fiscal fixada pelas leis orçamentárias em cumprimento à LRF. E, também, por não ter feito o contingenciamento da despesa como manda a lei. De pronto, nos assalta uma pergunta: como cobrar o contingenciamento com base na meta fiscal se já havia sido editado projeto de lei para alterá-la? Incompreensível.

A meu juízo, a questão desemboca, no fundo, na discussão acerca da possibilidade ou não de alteração da meta fiscal. Acredito ser possível, dentro de determinadas condições excepcionais que cabe ao governo expor detalhadamente. Decerto que não pode ser a regra, mas exceção. Em razão disso, não vejo como ato ilegal ou inconstitucional a ensejar o impeachment.

Não comentarei a questão aqui, pois já o fiz em dezembro de 2014, momento em que analisei essa possibilidade do ponto de vista do Direito Financeiro (veja aqui).

Neste momento limito-me a chamar a atenção para um dos pontos importantes da referida análise que tem ficado de fora dos debates. É a função do Anexo de Riscos Fiscais que é um dos anexos da LDO. 

Esse documento expõe as situações de risco que seriam capazes de comprometer o equilíbrio fiscal e, por isso, amparam e justificam ações futuras. Tal situação registrada na Lei foi aprovada pelo próprio Congresso ao aprovar a LDO. O que cabe ao governo é comprovar que utilizou a metodologia correta para apuração das metas e que foi a realidade que o surpreendeu.

Neste ponto, relembro que o Presidente dos Estados Unidos foi obrigado a propor alteração da meta fiscal após a crise de 2008, quando cerca de 800 mil servidores do Estado americano ficaram sem receber até que o Poder Legislativo autorizasse a alteração da meta fiscal.

Uma vez autorizada, permitiu a emissão de mais dólares e regularização da situação. A medida foi elogiada por muitos. Diziam que o Presidente Obama mostrou inteligência, pois encontrou a solução sem violar o orçamento e com o máximo respeito à democracia e ao princípio da separação dos Poderes. Pelo visto, o exemplo americano desta vez não foi bem acolhido nas terras brasileiras.

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O fato é que todos queremos um País melhor. Sou contra a corrupção. Deve ser apurada e punida, seja o infrator de que partido for. É importante ser firme neste aspecto. E sei que estamos todos aflitos e cansados neste momento.

No entanto, espero que todas as medidas sejam adotadas dentro do Estado de Direito. Não podemos nos igualar aos malfeitores. Não se corrige erros cometendo novos erros. O argumento de que os fins justificam os meios não poderá vencer. E, por favor, deixemos os personalismos e também os antipersonalismos que servem ao mesmo propósito.

Por essas razões, espero que os pedidos de impeachment que levantaram as questões comentadas sejam rejeitados se não restar caracterizado crime de responsabilidade de modo objetivo e inequívoco. Espero que sejam rechaçados do mesmo modo que o foram diversos outros pedidos de impedimento ao longo da história que não lograram comprovar a configuração de crime de responsabilidade.

Para avançarmos enquanto País e sociedade, necessitamos de firmeza e coragem, mas também de paciência e serenidade. Não nos deixemos atuar por ondas emotivas, ufanismos interesseiros ou maniqueísmos imaturos. Não espalhemos o espírito de guerra e de confronto sangrento. Saibamos assumir nossa opinião, mas buscando a conciliação e mantendo o respeito.