segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A falácia do "julgamento político", por Grevi Netto



Quando estudiosos e interessados pela ciência jurídica apontam os diversos problemas no julgamento do impeachment, geralmente recebem, como resposta, o argumento do "julgamento político".

Os que utilizam este argumento batem no peito com orgulho, como se fosse a panaceia argumentativa que salvaria a sua oculta vontade de ver um governo que detestam (por diversos motivos, exceto um que justifique o circo em andamento) cair, caindo também tudo o que este tipo de governo representou, em âmbito sócio-econômico.

Mas o argumento sobrevive a uma filtragem constitucional e lógico-semântica?

Quando falamos em julgamento e processo, todos eles, assim como todo o ordenamento jurídico e seus ritos, submetem-se à vontade da Constituição da República. E o que diz a Constituição da República? Muitas coisas pertinentes ao tema, como tentarei expor no rol exemplificativo abaixo:

1) Começo pelo princípio constitucional da jurisdicionalidade, aplicado ao Processo (tanto o processo penal quanto o processo administrativo sancionador). Sobre a jurisdicionalidade, atenho-me ao seu aspecto "imparcialidade", em especial a imparcialidade subjetiva dos julgadores (Piersack/82 e De Cuber/84, Tribunal Europeu de Direios Humanos).

Essa imparcialidade, em nosso ordenamento, decorre da adoção do sistema acusatório, isolando o julgador a um papel de observador - terzietà - garantindo a sua imparcialidade (sistema acusatório, como leciona o professor Aury Lopes Júnior, pressupõe a titularidade da ação por parte de um acusador; contraditório e ampla defesa; devido processo legal; presunção de inocência; exigência de publicidade e fundamentação das decisões judiciais) e da recepção do Pacto de San Jose da Costa Rica, com o seu artigo 8, e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com seu artigo X.

Como pode um processo acontecer quando os julgadores estão claramente contaminados por vontades políticas, inclusive com alguns já declarando o seu veredicto, antes do término da fase de produção de provas? Que julgamento é esse em que os julgadores, em vez da isenção, aliam-se à acusação? Voltamos à inquisição? E aqui entra a panaceia: "trata-se de julgamento político".

Não é assim que funciona. Esta falácia não pode se sobrepor à Constituição. É o processo que deve se adequar aos dispositivos constitucionais e não o oposto. Não se deve afastar a incidência das regras constitucionais pela conveniência do momento. São garantias de todo e qualquer cidadão, incluindo aí os interlocutores que se utilizam da panaceia

2) No segundo ponto, aponto a absurda e flagrante violação ao princípio constitucional do contraditório, aplicável a todo e qualquer processo, com uma história exemplificativa: Imagine que você, na etapa da produção de provas testemunhais (em juízo, por óbvio), depara-se com a ausência do julgador da sala de audiências. A pessoa que deveria estar presente na produção da prova, para analisá-la e decidir por base em todas as provas produzidas, não está presente para ouvi-lo. Absurdo, certo? É o que aconteceu na sessão de julgamento do processo de impeachment.

E quando falo em contraditório, não é apenas a formalidade de ser dada a chance para a apresentação da versão e produção da prova. Isso seria, tão somente, uma maquiagem jurídica para dar ares de legalidade ao processo. Não afasta, de forma alguma, o caráter golpista da trama em andamento.

O contraditório deve ser respeitado, também, em seu aspecto material: a chance de ser ouvido, de ter a sua versão considerada, no momento do convencimento do julgador. A chance de influenciar no resultado do processo. Pergunto-lhes: há alguma chance?

Que contraditório é esse em que os julgadores ausentam-se no momento da oitiva das testemunhas de defesa? Violação flagrante do contraditório e, por consequência, do devido processo legal. Completamente antidemocrático. Não se sustenta a argumentação de que é "um julgamento político" para isentar-se da responsabilidade de observar a norma constitucional.

Por último, prezando pela objetividade do texto, sugiro uma reflexão do ponto de vista lógico-semântico da expressão "julgamento político.

Se é julgamento, não pode ser político. Considerando certos elementos das acepções da palavra "política" por Hobbes e Bertrand Russel ("obtenção de vantagens" e "alcançar efeitos desejados"), temos uma inegável presença de interesses subjetivos, o que leva à contaminação do "julgamento", obrigado a respeitar princípios constitucionais de procedibilidade, em especial a jurisdicionalidade, em seu aspecto de imparcialidade. Trata-se de cristalina contradição. Aceitar a existência desse termo para justificar todo e qualquer abuso é atentar contra normas constitucionais (formais e materiais), tornando todo o processo uma farsa ainda mais antidemocrática.

O julgamento do impeachment é FEITO por políticos, mas estes estão submetidos à observância dos princípios constitucionais e das normas constitucionais formais e materiais. E não deve proceder a argumentação de que o processo seguiu as normas constitucionais invocando os artigos que referem-se diretamente ao impeachment, considerando que deve ser respeitada a Constituição como um todo, inclusive o seu "animus" e os princípios implícitos, decorrente da interpretação teleológica, e não apenas os dispositivos convenientes para os interesses políticos.

A adoção deste argumento como panaceia argumentativa só demonstra a fragilidade em rebater todas as nulidades e ilegalidades cometidas durante o processo do impeachment.

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